Hélia chegou a Presidente Prudente em 1929, com 10 anos de idade. Foto: Marcio Oliveira

THIAGO MORELLO • 08/09/2018 08:10:00

Um dia surgiu brilhante, entre as nuvens – flutuante -, um enorme zepelim. Pairou sobre os edifícios, abriu dois mil orifícios, com dois mil canhões assim”. Para quem já ouviu a música de Chico Buarque “Geni e o Zepelim”, esse trecho, assim como os demais, consegue despertar o poder imaginário do ouvinte, a ilustrar na mente o cenário vivido na canção. A bibliotecária Hélia Coutinho Cerávolo não precisa ouvir a melodia para lembrar-se de tal evento. Essa é uma das histórias que a mineira de Mar de Espanha (MG), mas prudentina de coração, tem guardado para si ao longo dos seus 100 anos, comemorados na segunda-feira.

Matriarca da família Coutinho Cerávolo, Hélia comemora seu centenário, bem como Presidente Prudente se prepara para registrar seus 101 anos. Além das memórias e experiências vividas na cidade e fora daqui, ela exala vitalidade e simpatia. Chegou aqui aos 10 anos de idade, saiu para estudar e voltou e, desde então, “não arredou mais o pé”, como ela mesma diz.

Atemporal, Hélia consegue funcionar como um livro de conto de fábulas, mas com histórias verdadeiras. Enredos esses que ela divide com os seis filhos, 23 netos, 25 bisnetos e o recente tataraneto, sem deixar nenhum detalhe sequer para trás. A intenção, para a mineira prudentina, é dividir o que viu da vida, além de manter viva a história de sua família.

O Imparcial também ficou sabendo de parte dessas histórias, compartilhada com emoção e perfeição. Confira na íntegra a entrevista com a dona Hélia, que além de mostrar sua força, experiência e a felicidade de completar seus 100 anos, ainda compartilha as perdas que teve ao longo desse caminho, mas também o mais importante: a destreza de acreditar na vida.

 

Como foi a chegada da senhora em Presidente Prudente e a impressão que teve assim que chegou?

Eu vim para cá com 10 anos de idade, em 1929. Minha família veio um ano depois do meu pai, que veio antes para resolver algumas questões. Isso aqui era horrível [risos]. A estação de trem era minúscula, tudo bem diferente de hoje em dia. Para você ter noção, a gente ia na igreja e tinha que tirar o sapato para tirar a terra antes de entrar. O Correio era de madeira. Mas assim que viemos para cá eu estranhava bastante, porque tinha pouca coisa. Tudo ainda estava no começo, mas a gente gostava muito. Ao mesmo tempo, tinha muito progresso. Eu ficava impressionada, porque não tinha esgoto, não tinha água corrente. Eram poço e fossa, bem diferente do que tem hoje em dia. Mas com 10 anos, tudo para a gente é uma aventura, né? E papai também gostava demais daqui. Largou tudo lá em Minas Gerais, o conforto que tinha, para começar tudo de novo, e amou. Ele era aventureiro. Sempre comprava e depois vendia, formava a fazenda e depois vendia, e a gente sempre acompanhava. Mas daqui ele gostou e firmou.

 

Sua relação com Presidente Prudente sempre foi constante ou você chegou a pensar em sair daqui?

Na verdade eu fui para São Paulo com 14 anos, fui para estudar. Estudei inglês por nove anos e também me formei em biblioteconomia, mas nunca cheguei a exercer, pois assim que acabei eu me casei e voltei para Prudente. E desde que casei, não quis mais sair daqui. Na verdade, até tive vontade de ir para São Paulo novamente. Chegamos a construir uma casa no Brooklin, mas pensei que meu marido, Jacomino Leonardo Cerávolo, não iria acostumar. E por ser tão parceira com ele, achamos melhor ficar por aqui. E em Prudente permaneci. Foi aqui que tive e criei meus sete filhos, quatro homens e três mulheres. E com a formação da minha família, conseguimos ter uma vivência com alguns clubes da cidade, como o Tênis Clube e o Lions. E foi uma época muito feliz. Nos anos 60, por exemplo, tinha muito em casa aquelas brincadeiras dançantes dos jovens. Então eles e os meus filhos iam lá pra casa, arrastavam os móveis tudo e colocavam para fora. No outro dia, não aparecia ninguém para me ajudar a arrumar tudo [sorri]. Mas foi uma época muito boa.

 

Com o casamento, a senhora integrou a família Cerávolo, que teve uma presença forte em Prudente, como o próprio Doutor Domingos Leonardo, que leva o nome do hospital. Como era sua relação com ele?

O Domingos era meu cunhado. Ele estudou no Rio, era craque no que fazia e foi o primeiro médico cirurgião da cidade. Foi ele quem fez todos os meus partos. Aliás, o motivo que levou o hospital ter o nome dele é diferente. Ele foi interventor aqui, no tempo da Revolução. E o Carvalho Pinto, que era o governador do Estado na época, achava que ele era muito direito e falou que queria uma faculdade de Medicina aqui, pois muitos pais queriam que os filhos se formassem, mas não tinha condição de mandar pra fora estudar. Nisso deu a ele dinheiro para construir uma casa e fundar o curso. Mas ai o governador que chegou depois pegou o dinheiro de volta e disse que já tinha muito médico formado na região. Depois, quando o Agripino entrou, ele ficou amolando ele todo o dia [risos], até que ele criou o hospital. No museu, tem peças do antigo consultório dele. Faz parte da nossa história. Mas ele morreu pobre, de tanto trabalhar pela cidade.

 

Como matriarca da família, como é a relação com seus filhos, netos e bisnetos?

São seis filhos vivos, 23 netos, 25 bisnetos e um tataraneto. Uma das minhas filhas fala que sou atemporal, porque eu tenho capacidade de falar com todo mundo. Tenho uma bisneta, por exemplo, que uma vez perguntaram a ela na escola que nome ela daria para uma rua, e ela respondeu: “Vó Hélia, porque minha bisa vai fazer 100 anos, está ótima e com saúde”. Então é muito gostoso. Eu tenho assunto com todo mundo, com todas as idades. Conto a história da nossa família para eles, porque se eu não contar, como eles vão saber? E todos ligam para mim, pedindo benção, para rezar por algo que eles querem. Tenho uma história engraçada até, com uma neta, que um dia ela me ligou e falou assim: “Vó, reza para o pai daquele meu ex-namorado, porque ele era tão bom e está morrendo” [risos].

 

Você acompanhou boa parte da história de Prudente, para não dizer tudo. Como foi ver o progresso acontecendo?

Vocês nem calculam como as coisas aconteceram. Cada dia tinha uma novidade para ver. Toda novidade eu estava ali para conferir. E era sempre tudo para melhorar, lógico. Eu não imaginava que Prudente poderia se tornar o que é hoje. Você por exemplo, vai acompanhando o progresso, mas não dando o valor como a gente dava, porque a juventude hoje está acostumada com o novo. Era tudo diferente e qualquer mudança era magnífica, já crescíamos os olhos. O rádio surgiu, eu vi. A TV surgiu, eu vi. Você viu o Zepelim? Eu o vi, passando sobre São Paulo, aquela beleza prateada, em 1935. O dirigível passando bem baixinho, diante dos nossos olhos. Eu vi muita coisa progredir. Fui para a capital estudar e lá eu vi muitas coisas acontecerem, numa velocidade maior que aqui. Mas hoje eu olho pela janela do meu apartamento em Prudente e lembro de tudo. Gosto do que vejo.

 

Quais são as histórias que te marcaram aqui em Presidente Prudente?

Se eu te contar você vai ficar até de noite, porque tudo acontecia [risos]. Tem uma triste, mas ao mesmo tempo engraçada. Os revoltos de 24 se escondiam na mata por aqui e roubavam as casas de noite. Então durante o dia, todo mundo falava para trancar bem as casas, porque os “pátria amada” iam entrar. Esse era o nome que a gente dava pra eles. Fui na inauguração da santa casa. Ajudei a arrecadar dinheiro para construir a Catedral. Naquela época, era o padre Sarrion, que depois virou monsenhor. Era muito bom, porque a gente trabalhava nas quermesses. E conseguiram construir. Eu até me casei na capela que era antes, mas ficava em outro local. Toda vida frequentei lá, desde o catecismo, então decidi que iria me casar ali. No tempo da Segunda Guerra também, era muito comum fazer tudo a pé, porque não tinha gasolina. Tudo foi racionado por causa da guerra, só os médicos tinham acesso, mas a gente não entendia o porquê. Tem tanta coisa engraçada ainda. Era tudo uma bagunça. A gente ia ao cinema e acendia a luz e apagava. Era muito gostoso.

 

A senhora cita bastante o envolvimento da igreja. Como é e foi sua relação com a religião aqui na cidade?

Sou católica, mas sempre tive a capacidade de compreender que as coisas da fé vão além da religião. Eu ouvia bastante que as pessoas não iam à missa porque achava o padre antipático. Eu falava para eles: “Vocês vão ver Deus ou o padre?”. Então minha relação é com Deus.

Marcio Oliveira – Mãe de 7 filhos, Hélia criou todos aqui; na foto, com filhas e sobrinha

Após esses anos vividos, como é a rotina da senhora, em busca do lazer?

Eu gosto muito de costurar e tricotar. Tenho como meta fazer 40 a 50 cachecóis para entregar aos asilos todo ano. Minha mãe gostava muito de costurar. Ela tinha um quarto de costura e fazia camisa para os empregados, calças… Ela não admitia que outra pessoa fizesse. Isso veio dela. Uma vez eu disse que se Deus me conservasse as mãos e a vista, eu já estaria grata, as pernas eu nem ligava. Nisso, eu fui dar um passo para subir uma escada e a perna falhou. Aí eu pensei: “mas já?” [risos]. Eu leio bastante também. Nunca fui para o exterior, mas conheço fatos e culturas de outros lugares como se fossem memórias vividas. Aprendi nos livros. Lembro dos detalhes, lembro como se tivesse vendo. Até quando vai durar isso eu não sei.  Também passo o dia vendo TV, fazendo tricô, assistindo filmes gostosos pela manhã. Inclusive ganhei um livro em inglês do meu neto, e estou lendo.

 

E qual o segredo para a longevidade?

Já me perguntaram isso umas três vezes. Eu corria tanto, trabalhava tanto para cuidar dos filhos e tudo que não posso te dar é uma receita. Tenho uma boa alimentação. Meu pai morreu com 95, lúcido, e uma irmã que viveu até os 106. Temos um histórico bom na família. Minha cunhada que dizia que viveu tanto porque comia o que queria. Tem a característica também de conviver com as crianças, com os adultos e adolescentes. Sempre estive presente no Natal, batismo, comunhão. Eu vibro com tudo que acontece e foi assim a vida toda. Acho que isso me mantém mais viva.

 

Ao mesmo tempo em que a senhora ganhou muito da vida, no tempo que percorreu também houve perdas, principalmente de pessoas. Você aprendeu a lidar bem com isso?

Sempre soube administrar muito bem, graças a Deus. Não adianta você se revoltar contra a vontade de Deus. A vida tem que fazer o que precisa ser feito.  Minha mãe chorou muito quando perdeu a filha mais velha, e falava que deveria ter levado ela no lugar. Perdi um filho, que sofreu durante um ano com câncer. Ele sabia que ia morrer. Ele só chorou um dia e falou assim: “Mãe, a única coisa que quero é ser enterrado bem junto com meu pai”. Morreu com 58 anos, jovem. É a vida. Não adianta se revoltar. Você se revolta contra quem? Contra o quê?

 

Recentemente, uma revista elencou Prudente como uma das cidades mais felizes de se viver. E a senhora, foi feliz durante todo esse tempo que viveu aqui?

Eu fui feliz. Toda vida tem altos e baixos, mas sou sim feliz. Pouca coisa me satisfaz. Conheci muita gente, vivi, trabalhei, criei meus filhos. Lembro das artes que eles faziam e começo a rir sozinha. A vida é e pode ser muito boa se você souber levar. Não espere muito da vida que ela não te dá muita coisa não. Vai tocando, vai vivendo. Tem gente que fica assim trabalhando e trabalhando, porque está pensando no futuro. Você sabe lá se vai ter futuro? Ninguém sabe. Então vamos aproveitar o dia de hoje.

Fonte: http://imparcial.com.br/