Mesmo após 20 anos de sua morte, legado de Mariana Braga da Costa cultiva altruísmo e amor no coração de quem cruza seu caminho
Jovem foi vítima de uma bala perdida e assassinada durante uma festa de calouros no campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Presidente Prudente (SP), em 22 de fevereiro de 2003.
Por Bárbara Munhoz, g1 Presidente Prudente
Reportagem especial: Mariana Braga, 20 anos de saudades
Dois mil e três. No ano em que o mundo assistiu ao início da guerra entre os Estados Unidos e o Iraque, a China enviou o tenente-coronel Yang Liwei ao espaço e, na TV, Christiane Torloni protagonizou Helena Alves na novela “Mulheres Apaixonadas”, Presidente Prudente (SP) foi palco de um dos mais trágicos e violentos episódios de sua centenária história: a morte da jovem Mariana Braga da Costa.
Ela comemorava o ingresso no curso de engenharia ambiental em uma festa de calouros no campus local da Universidade Estadual Paulista (Unesp) quando foi vítima de um disparo de arma de fogo na cabeça, em 22 de fevereiro de 2003. A bala perdida levou os sonhos e a alegria da jovem, à época, com apenas 18 anos.
Quatro pessoas foram atingidas pelos disparos, incluindo Mariana, que chegou a ser socorrida em estado grave e levada para a Santa Casa de Misericórdia de Presidente Prudente, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Para a família, restou a sina de lidar com uma perda tão prematura e inesperada.
“É conviver com a dor e a ausência da pessoa. Uma ausência e uma dor irreparável. É viver de lembranças, de saudades, de ver só pela fotografia… É muito dolorido”, desabafou ao g1 a mãe da jovem, Márcia Braga, hoje com 62 anos, duas décadas após a tragédia.
Mariana Braga da Costa e a irmã, Marina, junto aos pais, Márcia e Mário Braga — Foto: Arquivo pessoal
Naquela noite, a comemoração pelo aniversário da mãe e pela conquista da filha mais velha, aprovada em primeiro lugar no vestibular da faculdade pública, deu lugar à tristeza.
“Ninguém está preparado para esse momento, como nós não estávamos e nunca estaremos. Graças a Deus e à comunidade, nós atravessamos aquela noite traiçoeira, que foi muito dolorida, muito ruim. Jamais quero passar novamente e não desejo para ninguém passar o que nós passamos”, relembrou o pai, Mário Braga, aos 62 anos.
‘Noite traiçoeira’
Astromar Miranda Braga tinha um carinho especial pela sobrinha, que se tornaria a madrinha de batismo do seu filho, que logo nasceria. Ele relembrou que, naquela madrugada, foi acordado por uma ligação. Do outro lado da linha, a voz do sobrinho pedia para que ele fosse ao hospital. Assim que chegou, soube que Mariana havia sido alvejada por um bala perdida durante a festa de calouros na universidade.
“A minha reação, de imediato, foi dizer assim: ‘Não, não deve ter sido nada, não […]’. E, quando nós chegamos lá, a ambulância parou e a Mariana saiu de maca e entrou. O médico que a atendeu falou: ‘Olha, é grave”, disse ao g1.
De família católica, o irmão de Márcia Braga foi até a capela do hospital e, acreditando veementemente no milagre, pediu a Deus o dom de ressuscitar os mortos.
“Eu queria entrar naquela UTI [Unidade de Terapia Intensiva], fazer uma oração pela Mariana, para que Deus pudesse devolver a massa encefálica que ficou no chão da faculdade”, lembrou. A sobrinha, porém, já estava com morte cerebral.
Mariana Braga da Costa foi vítima de uma bala perdida durante uma festa de calouros, em 22 de fevereiro de 2003 — Foto: Arquivo pessoal
Poucas horas depois, em frente à casa da avó materna de Mariana Braga, dona Lourdes, os amigos da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, na Vila Maristela, aguardavam notícias. No interior da residência, a família esperava aflita, até que o tio chegou do hospital.
“Naquela madrugada, Deus não me deu o dom de ressuscitar os mortos. Eu voltei para casa, trouxe a notícia para toda a minha família, que estava reunida na casa da minha mãe, e, quando eu entrei, eu já entrei chorando. Tinha uma multidão de jovens em frente à casa da minha mãe […]. Eu entrei, eu dei a notícia. Todos foram ao chão”, memorou.
Enquanto os adultos processavam a brutalidade com que os últimos acontecimentos da noite sucederam, Marina Braga, à época, com 10 anos, tentava entender como a irmã, que havia saído para comemorar o início de um ciclo, não voltaria mais para casa.
“Eu lembro que, logo nos primeiros momentos, eu não acreditava no que tinha acontecido […]. Depois é que vai cair a ficha, né. Ainda mais quando você é criança e não entende muito bem as coisas. Hoje, eu vejo que lidar com isso aos dez anos realmente foi uma tarefa muito complicada. Acho que foi a coisa mais difícil que eu tive que fazer na vida”, afirmou ao g1 a hoje advogada, de 30 anos.
Mariana Braga da Costa abraça a irmã, Marina, oito anos mais nova — Foto: Arquivo pessoal
Justiça
O relógio marcava 2h30 quando um tiroteio no evento onde estavam cerca de 500 calouros teve início dentro do campus universitário. Na época, as investigações apontaram que se tratava de um acerto de contas entre duas quadrilhas rivais da zona leste da cidade.
A jovem estava na festa com a amiga, Karla Miranda, com quem se encontrava diariamente nos últimos quatro anos. Ao g1, Karla contou que a estudante estava animada para ir ao evento e insistiu para que a amiga fosse com ela.
Segundo testemunhas, havia muitos estudantes na festa quando um homem começou a atirar nas pessoas. O suspeito foi preso e, com ele, a polícia encontrou um revólver de calibre .38, seis cartuchos disparados e seis papelotes de crack.
“Ao final da festa, ocorreu a fatalidade. Foi uma loucura para a gente, que estava com ela na hora, o ambiente, a iluminação, aquela correria…”, relembrou a amiga, de 38 anos.
Conforme a polícia, dos oito integrantes de gangues que estavam na festa de calouros, três deles portavam armas. Na época, o Diretório Acadêmico informou que havia contratado 10 seguranças particulares para trabalhar no local.
Sidney Zanardo, que tinha 18 anos na época do crime, foi condenado pelo assassinato de Mariana Braga da Costa, em 2004 — Foto: Reprodução/TV Fronteira
Durante as investigações, cinco versões do crime foram reconstituídas por testemunhas e suspeitos, dentre eles, Sidney Zanardo, então com 18 anos.
À polícia, o rapaz confessou ter atirado em dois integrantes da gangue rival, mas negou ter disparado contra Mariana Braga da Costa. No entanto, após a primeira reconstituição, Zanardo ficou foragido.
Ele foi localizado após três meses, no Conjunto Habitacional Ana Jacinta, um dos mais populosos de Presidente Prudente, e as investigações apontaram que o disparo que vitimou a jovem partiu da arma dele. Em decisão de 1ª instância, proferida em 2004, Sidney Zanardo foi condenado pelo assassinato de Mariana Braga da Costa.
Ao g1, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) informou que, após o julgamento de recursos, sua pena ficou definida em 19 anos de reclusão, em regime inicial fechado. No entanto, como Zanardo já se encontrava preso, o início do cumprimento da pena foi considerado em 22 de fevereiro de 2003.
Ainda de acordo com o TJ-SP, com os benefícios legais a que teve direito, previstos na Lei de Execuções Penais (nº 7.210/1984), o término do cumprimento da pena pelo homicídio da jovem ocorreu em 28 de fevereiro de 2021.
Pena de Sidney Zanardo ficou definida em 19 anos de reclusão, em regime inicial fechado — Foto: Reprodução/TV Fronteira
Com o trânsito em julgado, o processo foi arquivado. Isso acontece quando “se esgotaram todas as possibilidades de recurso e o caso já teve uma decisão definitiva”.
Atualmente, Sidney Zanardo ainda está preso, já que possui condenação por tráfico de drogas e, conforme o tribunal, a previsão de término do cumprimento da pena é para 9 de abril de 2027.
“O arquivamento é do processo principal, que apurou o crime, mas o processo do cumprimento da sentença continua em outra vara, que é a Vara de Execução Criminal”, informou ao g1 o Tribunal de Justiça do Estado.
A reportagem do g1 também entrou em contato com a Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP). O órgão comunicou que, anteriormente, Sidney Zanardo estava preso na Penitenciária de Presidente Prudente, no distrito de Montalvão.
Em 3 de janeiro de 2023, ele foi transferido para o Centro de Ressocialização (CR) de Birigui (SP), na região de Araçatuba (SP), onde encontra-se preso atualmente, segundo a SAP.
Amigos e familiares no enterro de Mariana Braga da Costa, em Presidente Prudente (SP) — Foto: Reprodução/TV Fronteira
Mudança de rotina
Em nota ao g1, a diretoria da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Unesp, em Presidente Prudente, esclareceu que a morte de Mariana Braga da Costa “mudou totalmente a rotina do campus”.
As festas foram proibidas, independentemente das comemorações, e as atividades no campus se restringem ao horário de funcionamento da universidade.
Ressaltou, ainda, que, atualmente, a recepção de calouros promove atividades de acolhimento e que temas como a vida universitária e o cuidado com a saúde, informações sobre os cursos e atividades culturais e esportivas para integração entre os jovens fazem parte desta programação.
Mariana Braga da Costa passou em 1º lugar no vestibular para engenharia ambiental da Unesp — Foto: Arquivo pessoal
Confira, na íntegra, o posicionamento oficial da universidade:
“A morte da aluna Mariana Braga em 22 de fevereiro de 2003 é algo que permanece na memória da FCT-Unesp, pois a violência com que ocorreram os fatos e a perda de uma vida que tinha um futuro brilhante deixam marcas que não podem ser apagadas ou mesmo esquecidas.
O próprio centro acadêmico do curso de Engenharia Ambiental, curso que Mariana havia ingressado, fez uma homenagem inserindo o seu nome e permanecendo na memória da instituição. É denominado hoje Centro Acadêmico de Engenharia Ambiental (CAEA) ‘Mariana Braga’.
A morte de Mariana Braga mudou totalmente a rotina do Campus. As festas foram proibidas independente das comemorações.
Campus da Unesp, em Presidente Prudente (SP) — Foto: Reprodução/TV Fronteira
Após anos de debates e conscientização sobre os tipos de violência e a utilização de drogas e álcool no meio acadêmico, trabalho que continua até hoje, a Universidade foi aos poucos retomando as atividades culturais. Porém, as festas continuam não sendo autorizadas dentro do Campus e as atividades se restringem ao horário de funcionamento da Universidade.
Hoje a recepção de calouros promove atividades de acolhimento organizada por coordenadores de cursos em conjunto com a Seção Técnica de Saúde, o Diretório Acadêmico, Centros Acadêmicos e grupos de alunos organizados. Temas como a vida universitária e o cuidado com a saúde, informações sobre os cursos e atividades culturais e esportivas para integração entre os jovens fazem parte desta programação”, concluiu ao g1.
Os pais de Mariana, Mário e Márcia, com o padre da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, Rodrigo Gomes — Foto: Cedida/Missão Mariana Braga
Missão Mariana Braga
Ressignificar a dor e a saudade. Foi isso o que familiares e amigos da jovem fizeram ao criar o “Movimento Mariana Braga”, em 23 de fevereiro de 2003. A ideia, do então padre Antônio Sérgio Girotti, o Tutti, da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, na Vila Maristela, foi sugerida à família durante o velório da estudante.
Anos mais tarde, o movimento ganhou o nome de “Missão Mariana Braga”. Trata-se de uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, atuante no terceiro setor. Em 20 anos de existência, a instituição já acolheu mais de 900 mil pessoas, de crianças a idosos, por meio de atividades sociais e evangelizadoras.
Com o lema “mais amor, menos dor”, o movimento voluntário traduz a necessidade de expandir a luta em favor da vida e da redução da violência.
“É muito impressionante como tudo isso aconteceu. Um evento desse, que aconteceu dentro da nossa casa, conseguir tomar essa magnitude e se tornar algo bom para tantas pessoas. Eu acho que a minha irmã sempre teve o sonho de mudar o mundo. O negócio dela era: ‘Eu preciso mudar o mundo de alguma forma’. E eu acho que ela ficaria muito feliz de saber que ela mudou o mundo da forma dela, sim”, ressaltou Marina Braga.
Mariana Braga da Costa com a irmã, Marina, e a mãe, Márcia — Foto: Arquivo pessoal
Em cada curso, atendimento, retiro, palestra, grupo de oração, acampamento e trabalho social, Mariana Braga da Costa se faz presente nas ações de centenas de voluntários que se dedicam, com amor, à causa.
“A essência da Mariana sempre foi essa, de ajudar as pessoas. Ela encontrava uma pessoa idosa, ela queria ajudar a atravessar a rua, ela encontrava um animalzinho na rua, ela cuidava. A essência dela era sempre assim, de se preocupar com o próximo. Ela se preocupava muito com o próximo”, revelou ao g1 Márcia Braga.
O pai, Mário Braga, ainda relembrou que, antes de saber o resultado do vestibular da Unesp, Mariana havia iniciado o curso de serviço social em uma faculdade particular de Presidente Prudente.
“Ela estava tentando levar as duas faculdades juntas, porque ela falava para mim que o serviço social que ela ia fazer na comunidade, depois de formada, ela ia fazer um serviço voluntário com pessoas. Ajudar as pessoas gratuitamente. Ela era muito bondosa, era dela isso, era dela, a essência da Mariana era bondade, a essência da Mariana era alegria e a essência da Mariana era humildade”, contou ao g1.
Mariana Braga da Costa comemorando seus 10 anos com familiares e amigos — Foto: Arquivo pessoal
Ao longo de 20 anos, o dom que, aparentemente, não foi concedido a Astromar Braga quando ele, de joelhos na capela da Santa Casa, fez o pedido em oração, vem se revelando a cada vida salva pelo trabalho da Missão Mariana Braga.
“Naquela madrugada, Deus não me deu o dom de ressuscitar os mortos, mas Deus nos deu o dom de ressuscitar os vivos”, afirmou o missionário, de 57 anos.
Mesmo após sua partida, os frutos da bondade e do altruísmo que a jovem cultivou ainda em vida são colhidos pelos familiares, amigos e voluntários que abraçaram a missão. Exemplo disso é o trabalho realizado pela mãe nas casas de recuperação de dependentes químicos.
“Deus me deu esse presente de poder lutar contra aquele mal que tirou a vida da minha da filha. Deus me deu de presente, através da Associação e Fraternidade São Francisco de Assis, poder desenvolver esse trabalho de recuperação de dependentes químicos. Cada recuperado, para mim, significa um mundo com menos balas perdidas para tirar a vida de muitas Marianas que têm por aí”, enfatizou Márcia Braga.
O tio da jovem, Astromar Miranda Braga (à direita), participa de atividades de evangelização na Missão Mariana Braga — Foto: Cedida/Missão Mariana Braga
Para o presidente da Missão Mariana Braga, Henrique Langhi, o trabalho desenvolvido pelos voluntários do movimento é um instrumento de evangelização que impacta vidas.
“Foi uma coisa que mudou muito a minha vida. Então, nada mais do que dar um pouquinho do que eu recebi, lá atrás, para as outras pessoas, hoje. Evangelizar e provar que o mundo merece mais amor e menos dor, essa é a nossa grande missão”, ressaltou o administrador de empresas, de 58 anos.
Duas décadas de saudade
Quando o vazio dá lugar a um propósito de vida, lidar com a dor da partida torna-se um peso mais leve. Mariana Braga da Costa se foi e, ao mesmo tempo em que levou um pouco de todos, deixou muito dela.
“É a pessoa mais importante da minha vida e a pessoa que mostrou para mim que estar presente é muito mais do que algo físico, porque a minha irmã está presente na minha vida todos os dias, independente de ela ter partido ou não. Ela é, realmente, a maior presença da minha vida e é minha motivação para fazer muita coisa que eu faço”, ressaltou a irmã.
As irmãs Marina e Mariana Braga da Costa — Foto: Arquivo pessoal
Com seu jeito doce, alegre e bondoso de ser, ela é lembrada, com carinho, por todos que tiveram a sorte de cruzar o seu caminho.
“Esses dias, fui conversar com as minhas filhas sobre ela e chorei bastante, a saudade apertou, porque realmente era uma amiga muito próxima, a gente tinha uma afinidade muito grande. Fico imaginando como seria a vida dela, como ela estaria no dia de hoje, a gente compartilhando as mesmas coisas, conseguindo se encontrar, fazendo as filhas serem próximas, iguais a algumas amigas que a gente tem. A gente sabe que falta ela”, revelou Karla Miranda.
Saber que o legado de Mariana Braga da Costa se manterá vivo, independente de quanto tempo se passe, é motivo de alegria para os familiares e amigos.
“Hoje, nós convivemos com uma saudade. A tristeza foi embora, a revolta rapidamente foi embora, porque, hoje, nós vemos que estamos deixando aqui, formando nesse espaço onde nós estamos aqui, a memória da Mariana”, enfatizou Astromar Braga.
Astromar Miranda Braga abraça a sobrinha, à esquerda dele — Foto: Arquivo pessoal
Por outro lado, as características da jovem que, em 2023, completaria 38 anos, continuam ressoando no coração de quem teve a felicidade de compartilhar sua existência com ela.
“Foi uma menina muito amorosa, muito desejada por nós e cheia de vida. A marca principal da Mariana era a alegria de viver. Era uma menina cheia de sonhos, projetos de vida, muito amorosa”, relembrou Márcia Braga.
Para o pai, a certeza do reencontro torna a caminhada mais leve.
“A falta física, para nós, humanos, é muito difícil, né. Mas a nossa fé, a nossa religião, o que a gente pratica, nos permite pensar além, pensar no que vem, não como começou, mas como vai terminar […]. É lógico que a gente fica triste com a falta dela, mas nós vamos fazer uma festa quando chegar lá no céu”, finalizou Mário Braga.
Morte de Mariana Braga da Costa completa 20 anos em 22 de fevereiro de 2023 — Foto: Cedida/Missão Mariana Braga
Fonte: /g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao